sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Historinha

Quando eu disse que era gay ela se jogou em cima de mim, me abraçando com força e rindo, "que alívio, que alívio!", ela ria, achei engraçada a reação dela e abracei-a de volta mas não entendi direito o porquê de tanto alívio, pra falar a verdade nem pensei muito naquilo, eu queria mesmo era contar do Alexandre, quem ele é, o que faz, o tanto que gosto dele, pensando bem até que ela demorou a entender as dimensões da nossa história, foi só um tempo depois que ela perguntou, seus olhos redondos espantados, "você é casado?", o homem pisando na Lua pela primeira vez, eu disse com orgulho que sim, que há seis anos, ela parecia feliz com minhas respostas, (ela estava feliz?), e me abraçava de novo, dizia que eu era lindo, "as mulheres devem se jogar em cima de você, não?", eu ria e avançava no que queria contar, "mudei a minha vida toda por causa dele, por isso voltei pra cá, não podia mais ficar longe dele"; à nossa volta pessoas dançavam Madonna, drinks desciam leves pelas nossas gargantas, invadimos a pista com furor e fomos com paixão aos copos, os nós esquisitos desmanchavam-se imprimindo retratos mais nítidos, "é como se as peças se encaixassem e tudo adquirisse o sentido que precisava ter", ela disse. Meu rosto ardia, meus olhos radiantes: uma cortina abria-se diante de nós, era a primeira vez que nos víamos.

sábado, 8 de novembro de 2008

Mas o que eu queria mesmo

Mas o que eu queria mesmo era que o telefone tocasse agora e fosse você dizendo que tá com saudade e que precisa me ver agora ou vai enlouquecer de tanta paixão e que a noite é larga e que a vida é comprida e que a gente é jovem e que vai dar tudo certo entre a gente, seja lá o que for tudo, seja lá por quanto tempo, e que você dissesse ainda que não tem certeza de nada além da vontade de me ver, que a vida tem que ser vivida com paixão, liberdade, responsabilidade e ousadia, que os sonhos viram verdade, que a gente pode escolher ser feliz e, numa noite como essa, você quer simplesmente me dar um beijo. Era isso que eu queria. Qualquer outra coisa diferente disso, tou fora.

Como é suposto que aconteça em Novembro

Vontade de tantas coisas: de saber o futuro para confirmar já minhas infundadas teorias sobre o rumo para onde os dias me levarão, de ter uma bola de cristal e adivinhar o que vai acontecer, de mergulhar nos seus olhos claros pra ler a verdade dos momentos que dividimos juntos, tantos e tão distintos ("é que a gente mudou tanto desde que a gente se conheceu, não foi?"). Eu digo uma besteira, você ri, eu pergunto "de quê que você tá rindo?", você imita a minha voz e ri de novo, como se eu fosse a pessoa mais fascinante desse mundo. Você é a pessoa mais fascinante desse mundo, pelo menos nesta noite de sábado, que descrevo: Manuela de banho tomado, pizza jantada, pijama de flanela e chinelo de gatinho cor-de-laranja, barulho da Iara de cabelo lavado arrumando a cozinha, Beleza, a shitsu, passa apressada e penso que daqui a pouco vou tomar um banho para encontrar uns amigos. Faz frio na rua como é suposto que aconteça em Novembro. Sem sustos, a vida toda nos seus lugares. E ponto.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Todos os domingos da minha vida, essa janela aberta sobre maio

(Para Marcos)
Todos os domingos da minha vida, acho que até uns 16 ou 17 anos, eu passei brincando no quintal da casa dela, e olha que ela nem era a avó que a gente mais gostava, eu e as minhas irmãs, horrível falar isso, né?, mas é que ela não deixava a gente pegar fruta, e lá tinha ameixa, tinha jambo, não era como a mãezinha, não, nossa, a mãezinha sim que foi metade da minha vida, quando ela morreu em 87 parecia que era o chão se abrindo, eu ficando mais sozinho, mais complicado, mais diferente dos outros, não sei quem foi que me falou que quando você não pega um bebê no colo, deixa ele abandonado, ele faz autismo, mais ou menos tipo isso que me acontece na noite quando vai dando a hora, quero fazer e acontecer, eu surto, tiro a camisa e danço em cima da mesa, foi uma loucura quando a mãezinha morreu, eu vim ao mundo e a mãezinha já tava lá em casa, era como se fosse minha mãe, mesmo, mas eu já te contei isso mais de mil vezes, sei que agora é por isso que eu vou pra lá, não vou demorar lá, não, vou amanhã de noite, ver minha avó, tá com 92 anos, deve tá igual um bebezinho que fez autismo, aquela coisa toda, tem três anos que não volto lá, cê não entende isso, não, né?, cê nasceu e viveu a vida toda aqui, cê não sabe como é isso de ser do interior, é como se isso mudasse toda a vida da gente o tempo todo, cê sabe que eu tento mas não consigo deixar de me espantar com as coisas, de ver novidade em tudo, gozado porque você não se espanta com mais nada, né?, gosto de ficar do seu lado, você explicando como vai ser a nossa vida, eu não, eu me espanto muito, sou do interior o tempo todo, mesmo quando tou dormindo, cê sabe que eu tento, mas é que eu passei todos os domingos da minha infância brincando naquele quintal e ela não deixava a gente pegar nem fruta, nem pegar passarinho, o vô deixava a gente fazer tudo, o vô marido dela, o marido da mãezinha eu nem conheci, acho que ele morreu em 68, 69, sei lá, eu nem tinha nascido, eu acho; sei que a gente brincava lá, eu acabava brigando com todos os meus primos, minha irmã saía batendo na gente, a gente se escondia no quintal daquela casa que meio que foi a minha vida toda, é engraçado, parece que a gente vai sendo empurrado pra frente quando vai morrer alguém, o vô morreu no réveillon tem dois anos, cê lembra? a gente passou o réveillon triste, com aquelas pessoas que nunca foram a Minas, aquela gente louca naquela casa de praia que parece que nunca teve avô, ele morreu às dez da noite, ó só que triste, na minha família parece que nada dá certo, queria tanto ter tido um irmão homem, pro meu pai ficar feliz, pra casar e morar perto deles, pra ir pra roça, mas eu escolhi ver o mundo, ou foi o mundo que me escolheu, sei lá, sei que deu nisso, fui ver as coisas, acabei vendo você e a gente veio parar aqui nesta noite, essa janela aberta sobre maio, essa brisa fresca, sei que vi tanta coisa que quando volto pra casa parece que o mundo encolheu, que cabe tudo numa caixinha, ou fui eu que fui longe demais, eles me olham, eu olho pra eles, a janta na mesa, a gente senta, come, toma café e vai dormir, depois no dia seguinte a gente acorda, senta e toma café, de novo, sei lá, parece que hoje tou sem bordão, tá faltando uma rima, sei que tou doido que chegue amanhã pra viajar, queria mesmo, gozado, nunca falei isso pra ninguém antes, queria era botar eles todos numa caixinha, a mãe fazendo o café já com açúcar, e levar todo mundo junto comigo quando eu fosse ver o mundo.

A história de Rita e Mateus - E eu queria

E eu queria dizer que te amo e que a noite é linda e que você é linda e que se pudesse eu pegava você no meu colo agora porque eu queria dizer que te amo numa noite como essa e chamar você pra dançar ou pra ver o mar e ouvir você falar sobre as coisas que você sempre fala com tanta graça com tanta alegria com tanta energia e eu queria dizer que te amo como quem toca tambor nesta noite e beijar você com a minha força de quem ama ama muito como eu amo você mas numa noite como essa eu queria dizer que te amo e então eu diria que estou aqui que estou perto e que vou pegar você no meu colo pegar você pra mim e “que tal se eu dissesse que te amo?”, perguntei um dia pra você, rindo e você riu também e não entendeu, mas eu nem sei se te amo de verdade ou se só quero você pra mim e será que tem alguma diferença se na verdade o que eu queria era botar você numa caixinha e guardar você só pra mim porque eu, ah, como eu queria dizer que te amo, Rita, que te amo, Rita, meu deus, quanto te amo, Rita.

A história de Rita e Mateus - E você já sabia

E você já sabia o que eu ia dizer antes que eu mesma soubesse do que eu ia dizer, tamanha a sintonia, e nem havia ciúmes entre nós, nem mesmo quando nos conhecemos, e foi instantâneo, e era engraçado, é até hoje surpreendente o fato de não precisarmos desfazer os compromissos mantidos com outras pessoas e o mais difícil era fazer com que meu namorado entendesse, ele dizia “tenho ciúme do Mateus” porque você Mateus virava já o meu Mateus o meu Mateus secular constância manhã tarde noite e manhã outra vez: tudo que a gente era.

A história de Rita e Mateus - O beijo naquele jardim

O beijo naquele jardim de afeto era mais que um exercício de desejo, era um afago na cabeça do cachorrinho amigo era a volta cotidiana para casa era fome ao meio-dia de uma terça-feira, (não a cama, mas a mesinha de cabeceira), quando eu percebia que não tinha ninguém esperando por nós além de nós mesmos e então você era a solidez das sete da noite, “você está tão bonita”, você me dizia, me olhando surpreso jogar a bolsa no sofá, pegar um copo d’água na geladeira, “se pudesse, casava com você e a gente envelhecia, cada um na sua cadeira”, você me dizia, e me beijava com um beijo de um desejo tão puro tão macio tão morno e sobretudo tão constante que era quase um beijo sem sexo. Era assim o beijo naquele jardim, o beijo que eu não trocaria por nenhum outro, aquele beijo.

A história de Rita e Mateus - Seus óculos

Seus óculos eram o que havia de mais secular em nossa existência e era impossível sair na rua sem eles sendo que seus óculos eram parte do meu rosto, da minha juventude, surgiram na minha vida em uma tarde de setembro quando trocamos dois ou três dedos de prosa no corredor da universidade, ainda que, é bem verdade, eu já tivesse reparado umas duas ou três vezes no par de olhos que você era, pois foi por aquelas paragens quando seus óculos (eram nossos, aqueles óculos) surgiram no azul das minhas tardes e junto e depois deles vieram você, seus contornos, suas histórias e seus tons, mas os tons não, que o tom da vida era você quem dava.

A história de Rita e Mateus - Rita

Rita, você não sabia, mas você era a dona da beleza sendo que sua beleza estava na atenção minuciosa em cada minuto precioso dos seus dias e era por isso que a natureza despejava nela tudo que lhe coubia ficando você Rita tão bonita que transformava os lugares onde estava e você fazia com que tudo que estivesse à volta dela ficasse, não só mais bonito, como mais harmônico e saudável sendo que dela saía tudo que vibrava no mundo e as pessoas procuravam aquela vibração que vinha de você, já que você difundia uma luz de pureza ingenuidade e afeto que me comovia e desde a primeira vez que vi você, Rita, andando pelo corredor da universidade não tive dúvida de que aquela pele claríssima aquele cabelo também claro, os olhos da mesma cor, o ondulado do cabelo e do corpo de Rita, que desde a primeira vez em que vi Rita e sua doçura que caminhava com ela, desde aquela tarde de setembro não tive dúvida de que Rita você seria minha não por um dia nem um mês nem mesmo um ano, mas Rita seria minha e eu de Rita pelo resto da vida e nada haveria que impedisse esse fato e fomos.

A história de Rita e Mateus - Você sabia ser bonito

Você era bonito e encantava as pessoas, sendo bonito de uma altura larga, ombros vastos, olhos escuros da cor do cabelo ondulado, que às vezes você raspava e eu achava lindo, os primeiros botões da camisa sempre abertos, os tons quase sempre pastéis de onde se via o início do pescoço, os pelos do peito; as pernas, os braços fazendo gestos, você fumava um cigarro e me olhava e sorria com a mesma boca que, você contava, tinha sido eleita “a melhor boca” no colégio e eu ouvia sempre essa história com ciúme das menininhas que conheceram você antes de mim, como ouvia as histórias sobre a casa enorme em que você morava, sobre seu sonho de ser Imperador quando crescesse, que depois mudou para Papa, e enfim, bombeiro, como todas as crianças. Eu, que sempre quis ser aeromoça, não me encantava apenas com sua beleza, que dava vontade de ficar olhando pra você, mas com o conjunto que você compunha, sentado no sofá, ou sentado numa cadeira de palhinha (a sua preferida), segurando um cigarro e dizendo aquelas coisas fascinantes, (era de solidez, sua beleza), embevecendo não só a mim, (tinha consistência, seu corpo), como ao grupo com quem a gente conversava, “que mistérios tem o Mateus pra você, Rita?”, um amigo me perguntou, uma vez. O seu fato era de beleza sendo sua beleza apenas mais um dos ímãs que atraía os olhares das pessoas a você quando eu gostava também do seu jeito de se vestir sem prestar atenção, (e o jeito desatento de tirar a roupa contando histórias prestando mais atenção no que dizia do que nas roupas que você ia jogando na poltrona), o jeito desligado de despejar a suéter no ombro, “essa suéter é minha?”, você perguntava quando eu usava suas roupas, e ria, “eu mesmo não conheço minhas roupas”. Você não era daqui, “você não é daqui desse planeta, sabia?”, eu perguntava, quando a gente, aos domingos à tarde, ficava olhando o Leblon pela janela. Você, virado para a frente, respondia que “você é outra coisa, você é única, Rita”, e esbarrava com seu ombro no meu, sem me olhar, a gente sabendo do que você estava falando, eu via você, eu dizia “eu tou te vendo”, você ria, soltava a fumaça do cigarro, e eu acreditava que nós éramos as pessoas mais felizes do mundo.

A história de Rita e Mateus - Tinha um S

Tinha um S no corpo de Rita um S que vinha de silêncio e das horas que passávamos sem nos dizer nada, vinha sobretudo dos domingos em silêncio aquele S que era uma estrada percorrida por nós diariamente nas voltas do corpo de Rita, este nome corpo onde o S vinha também de solidão, que Rita sofria de uma solidão incurável e apegada e Rita tanto se apegava a ela que quase se esquecia de que o S de seu corpo vinha também de solar porque moça mais solar que Rita não havia sendo assim uma existência solar e solitária e silenciosa mas também serena, que o S vinha também de serena e satisfeita como só Rita sabia ser e era serena como uma tarde na beira do mar em Muriú ou uma noite na serra e sendo assim era um S que vinha também de simpatia e samba e serenata e um S que vinha também da senhorita d’outros tempos que ela era, da sirene em gargalhada, da sereia dobrando-se no lençol, da sinfonia de nossos dias e, novamente, da serenata e, naturalmente, da seresta e, sobretudo, S plural que vinha sobretudo de sobretudo, o S do corpo de Rita.

A história de Rita e Mateus - E você era engraçado

E você era engraçado e então a gente ria mas a gente ria tanto a gente ria que se engasgava a gente era um vermelho gargalhada dando risada se arrebentando de rir as lágrimas caindo fazendo xixi de tanto que a gente ria e tinha que parar o carro no meio da rua para não bater de tanto que a gente ria quando conversava você dirigindo eu implicando, “anda, o sinal abriu”, e a gente rindo rindo rindo como quando a gente foi expulso do cinema de tanto que a gente riu veio o lanterninha, ameaçou acender a luz foi até meio chato e a gente ainda assim saiu se dobrando de tanto rir a vida passando você dizia coisas tão mas tão engraçadas e aconteciam as coisas mais engraçadas com você que parecia mentira (e às vezes eu até acho que você mentia mesmo para me agradar e me fazer rir ainda mais) como naquele dia em que deu uma pane no sistema elétrico do seu carro e a buzina disparou e dispararam também o limpador de pára-brisa, a agüinha que limpa o vidro e todos os faróis traseiros e dianteiros que ficaram piscando, justo quando você pela primeira vez dava carona para a sua chefe no trabalho voltando da universidade e vocês ainda pegaram um engarrafamento e, você me contou, o tempo todo no engarrafamento a buzina não parou de tocar aquele constrangimento dentro do carro e você contou até do motorista de táxi que ria da cena, oferecendo carona, “a gente deixa ela e depois volta pra buscar o carro, topa?”, ofereceu, referindo-se à sua chefe, toda arrumada, a sua cara chegando em casa e me contando essa história, e teve também a vez que você foi passar um fim-de-semana em Angra e quando estava no maior bem bom, nadando longe da praia viu que os quatro rothweiller do dono da casa mergulhavam e vinham atrás de você e você viu o dono da casa acenando para você sair da água e só aí você lembrou que o cara era nadador profissional e que tinha treinado os animais para nadar com ele, “aí eu turbinei”, você me contou, eu passando mertiolate, você todo arranhado, de ter subido no deck desesperadamente, “sabe Tubarão?, sabe Jaws?, era a-qui-lo”, você contava e eu me dobrava de rir ainda quando a gente teve um ataque de riso e isso foi ainda nos tempos de faculdade que a gente riu tanto mas a gente riu tanto tanto que a professora perguntou de quê que a gente ria e você respondeu que era do fecho-ecler (que você, como um senhor do outro século, chamava de braguilha), do fecho-ecler dela, que estava aberto e até hoje não sei como a gente não foi expulso de sala e reprovado naquela matéria, lembra?, mas o melhor mesmo foi quando você bateu de carro porque tinha uma barata do lado de fora do vidro pára-brisa, às quatro da manhã, “joguei o carro contra um gelo baiano e me lancei pela porta direita, acabei caindo pra fora do carro e meus óculos voaram no chão, minha sorte foi que vinha passando uma velhinha passeando seu cachorro que catou os óculos no chão pra mim e ainda matou a barata!”, você espantado com a sorte enfim, você era engraçado e mudava os acordes, as texturas, os tons, mas os tons não, que o tom das noites e dos dias e da vida era você quem dava.

A história de Rita e Mateus - Uma voz do outro século

Você era uma voz do outro século um sarau à fresca à varanda à luz de velas uma conversa sempre aprazível e amena e apreço e beiral e maçãs da face eram algumas das expressões que você usava como se fosse um senhor dos outros tempos que você era, “não acho meu livro de cheques”, você dizia e essa era a conversa que me esperava, sentado no sofá, não às sete, que nossos horários eram outros (essa coisa das horas) mas enfim então era essa conversa de pernas cruzadas e afeto que me esperava ou seria eu quem esperava por ela vendo televisão para depois comentar com você essa voz do outro século esse senhor secular pai de família austero de cores escuras e vaidade enxuta como bem cabe ao pai de família que você é o pai de nós dois sempre olhando para mim, “eu olho para você, Rita, você acha que eu não olho, mas eu olho, Rita”, você me dizia, me chamando pelo nome, respeitável e senhorial como cabe a um senhor do outro século de mucamas e confessionários e conversadeiras e as tardes e os tons, mas os tons não, que o tom dos dias era você quem dava.

A história de Rita e Mateus - Era bom chegar em casa

Era bom chegar em casa e encontrar em você Rita minha idéia de par, minha possibilidade de vida feliz, minha lua de mel a bordo em direção a um porto qualquer no Atlântico, as viagens que planejamos e as que realizamos, era bom voltar pra casa e ver você Rita frajola por ali, espevitada falando no telefone, contando uma história, comentando sobre uma coisa que leu no jornal ou conversou na fila do banco, era bom chegar ali com você Rita e eu sonhava quando via você Rita e a cada dia eu sonhava novamente na vida feliz que você me oferecia na cerimônia de apreço que era o seu beijo e o seu abraço apertado, você me abraçava com força, sempre, era tão bom chegar em casa.

De quando eu ainda não acreditava em milagres

Dizem por aí que eu ando sumida que não retorno as ligações que no fundo sempre tive um jeito meio esquisito, já ouvi dizerem também que sou muito fechada, que ando sempre com os mesmos amigos e que escapo do povo feito água escorrendo na palma da mão. Tão dizendo também que eu ando calada que já fui mais festeira que já fui mais engraçada e até mais bonita, vieram me dizer outro dia até que essa mania de tomar coca light tá começando a preocupar as pessoas. Preocupada tou eu que ando sumida de mim me procurando em tudo quanto é quanto desse mundo de Deus, na beira desta madrugada insone que não me reserva nenhum milagre.

As flores esta noite

Eles se encontram como se nunca tivessem se separado. Num pijama da hello kitty azul, ela senta na escada esperando ele descer pelo elevador. "Paizinho", e levanta os bracinhos pedindo colo. São sete horas de uma manhã linda de outono. Parece poesia, mas é verdade pura. Me arrumo pro trabalho e deixo os dois largados no sofá como se tivessem passado a vida toda ali, vendo televisão. Ganho o dia e novas emoções. Na hora do almoço, o menino vira-se para mim no restaurante, entregue, e diz que o pior que há são os casais que jantam juntos sem trocar uma só palavra. Mal me quer, bem me quer, tudo pode ser visto com a lente de pétala que escolhemos desfolhar. Contorno o dia e seus mistérios vencendo o resto da gripe com meus olhos aveludados. "Você se derrete para ele", disse outro dia uma amiga que nos viu juntos. Será mesmo? Entre o amor e a vontade de amar há tantos passos. Chego em casa à noite para encontrá-los novamente no sofá: "levei-a à aula de tênis". Ela ri com seu sorrisinho banguela de quem perdeu o primeiro dente, e diz: "Paizinho, tou com fome". Os dois ganham a cozinha em busca de leite quente e bolachas. Eu ganho a vida, como se fossem flores esta noite.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Cláudio

Comemos bacalhau com azeite e dividimos uma faca para cortar os figos de sobremesa, conversa vai, conversa vem, forramos a mesa e as cartas são dadas quase como se não percebêssemos que começamos a jogar. Três de copas, valetes de ouros, muitos quatros são descartados e dançam pela mesa. Mamãe e Cláudio lembram de um ataque de riso há muitos anos atrás, enquanto passeavam pelas ruas da Urca e riem tudo de novo, depois lembram dos dois sacos cheio de patos com que inundaram o lago da Fazenda, "ele encheu dois sacos com patos e ia tirando os patos de dentro dos sacos e  jogando os patos dentro do lago!", mamãe explica. Manuela joga na quarta cadeira com seus jokers, tentando participar da brincadeira. Tomamos café, falamos da vida, enquanto tiramos a temperatura obsessivamente para constatar: 37, 37, 37. "Gente, eu tou com 37 graus!, chega", ele diz, rindo, e completa: "eu não morri", e todos rimos, até chegar o Nelson mais tarde. E pedir pra tirar a temperatura de novo. Jogamos mais uma rodada, Nelson dá palpites sobre os jogos de todos nós.  Cada um come banana de um jeito: na casca, amassada com mel ou amassada com canela e adoçante. Amasso a minha e a do Cláudio. É meia noite quando nos abraçamos com força e lá saem os dois pela porta. Todos os tipos de amor: sentimentos verdadeiros, de vida inteira, transbordam. 

Sentada na escada

Carinha amassada, acabando de acordar, ela senta na escada: "Posso ir trabalhar com a mãe?", o último dia de férias, a vida amanhã voltando àquilo que chamamos normal, muito entre aspas, aliás, a vida toda entre aspas, neste período em que parecemos estar flutuando, à espera de um algo misteriosamente importante, às portas de um espetacular acontecimento que fará virar a vida feito o tempo no domingo à tarde: a baía de Cascais, crianças com algodão doce, Manuela com um balão em forma de borboleta deitado pela força do vento, tiramos fotos de frente pro mar, avó e neta abraçadas sorriem pra mim, parece fim de filme quando tudo acaba bem e sobem os créditos ao som de uma música doce, suave, aconchegante. As férias chegam ao fim e as revejo em flashback, cada passeio à noite: "a Manuela está saindo à noite", ela impressionada, feliz. O peso de cada palavra que lhe é dito, a alegria de cada sorvete. Digo pra carinha: "Hoje não, florzinha, hoje a mãe vai ter muito trabalho". Ela fica sentada na escada, eu fecho a porta.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Tempo mudando

A vida vai mudando feito o tempo esta tarde e quando a gente se dá conta, bateu um vento, passou o minuto, viraram o momento e o astral, não é impressionante?, as semanas rendendo-se umas às outras e na troca do bastão trazendo novos acontecimentos e aspectos, feito ondas mesmo, por menos original que esta metáfora soe. Enfim, nada de novo, mas tudo mudando.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Esta tarde

Esta tarde levo comigo todos os que ficaram para trás, o Brasil todo, os amigos e os que não chegaram a ser amigos, os que não quiseram se associar, aqueles a quem me associei e a vida separou, levo comigo nesta tarde todos os lugares por onde passei, o pátio do colégio, a lavanderia da casa da Urca, o Jornal Nacional, os finais de tarde no verão, a vista da Baía, o globo terrestre do escritório do meu avô, meu pai jovem levando-nos para vê-lo jogar futebol aos sábados, a Galeria Menescal, Copacabana inteira nos anos 70 eu levo comigo, as cores estouradas das fotos confundem-se com tudo que levo comigo, mais o suco de caju Maguary, a lapiseira do meu avô, a letra caprichada, o primeiro beijo na Praia Vermelha, o primeiro namorado, a caixa pesada do violão, o sinal chamando para a hora do recreio, o Rio de Janeiro no inverno, a sensação de abandono quando começava a anoitecer, tanta coisa que levo comigo, as rabanadas no Natal, as viagens de carro para Santana do Deserto, o Baixo Gávea, a letra arredondada nos cadernos do colégio copiando tudo que o professor dizia, tudo isso e mais o João e nossas lembranças, nosso passado sagrado, imprescindível, perfeito em todos os equívocos cometidos, perfeito até em todo o tempo perdido e recuperado aqui, nesta tarde.    

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Não tinha reparado antes em você?

Você dança com o acordeon nos braços e sorri meio tímido, como se não quisesse gastar ali todo seu charme, só pra gente e pras outras cinco mil pessoas diante do palco esta noite. Acho que reparei em você logo na primeira vez, noutros camarins, noutros momentos da vida. Mas hoje a noite é de eclipse e a lua vai sendo abiscoitada pela sombra que a terra faz na frente do sol. Em todos nós a sensação de que a noite é especial. Você dança como se fosse dono da vida. Não tinha reparado antes em você? Você vem como o eclipse e, assim como vem, já foi, encontrar com umas meninas: “hoje ela veio sem namorado”, você diz animado para um dos amigos da banda, e sai camarim afora, na direção da noite, deixando escorrer um sorriso pra mim. A terra avança, a noite inspira e a lua se enche novamente, dona do céu.

Fim de tarde em Portimão

O sol se põe por trás do hotel Casino em cujo topo vêem-se as bandeiras da Alemanha, Inglaterra e França. Mais cedo, na rua, pedindo indicações acabei agradecendo com um tímido “danke schon” ao esforço feito por um cidadão que passeava com um cachorro e que simplesmente respondeu em alemão às minhas perguntas feitas em português. Almoçamos com catchup e batatas fritas cercadas de estrangeiros da pele branca, bebês de olhos azuis e adolescentes que repetiam sanduíches enormes. O cafezinho tomamos com Tia Elza e Ju, um oásis de inspiração e verdade, noutro restaurante rigorosamente igual ao nosso. Na piscina de crianças, Manuela: “vamos morar neste hotel, mamãe?”. Daqui da varanda do quarto, vejo a rua cheia de lojinhas onde vendem-se havaianas, anéis de prata, saídas de praia estampadas, sorvetes coloridos e turistas indo e voltando, pra onde, meu Deus? Tudo menos paz, mas é ótimo ter vindo. Misturada com os muitos barulhos da rua, do ar condicionado dos quartos e da televisão, vem lá do jardim uma gravação chiada de Rui Veloso, “mooooostra-me o teu lado lunar”, dando sentido à tarde.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Tenho tudo pra me apaixonar por você

Eu tenho tudo pra me apaixonar por você. Todos os elementos fundamentais pra executar esta missão dentro da maior ciência e eficácia: tenho meu olhar arredondado e os cachos do meu cabelo, tenho o ar de verão e o sorriso parado no rosto retornando o seu, tenho nos olhos o detalhe discreto da sua camisa com o botão aberto, tenho no armário todos os vestidinhos necessários pra passear com você de mãos dadas na beira da praia, tenho a maior curiosidade do mundo pelas histórias que você conta, tenho as tardes de frente pra janela, tenho na memória os músculos dos seus braços quando você os cruza sobre a cabeça e, distraído, conta-me alguma coisa que julgarei fascinante, tenho a sensação de proximidade, a vontade de pegar no seu braço quando encosta no meu, o interesse por tudo que vem de você, tenho o mesmo tamanho, o mesmo sentido de humor e o mesmo tempo para as coisas, além, é claro, da admiração profunda e da mesma sensibilidade para as pessoas. Como se tudo isso fosse pouco, tenho a sensação de um encontro importante, de algo acontecendo que ainda não tem nome; parece uma brisa, parece o próprio verão chegando, (o sol quando chega não faz barulho). É lua cheia em Agosto, um cachorro late longe, a noite ferve. Tenho tudo pra me apaixonar por você.

João

Tenho pensado muito no João ultimamente. É impressionante como alguém pode estar tão perto estando ao mesmo tempo tão longe. 

Back in 1999 - 2, um tanto cafona

 Ao contrário de outros amores, que vêm para gerar filhos e inaugurar laços familiares, ensinar a vida, mudar destinos e comportamentos, ou simplesmente para dizer algo de novo e/ou de fundamental para alguma das partes envolvidas, aquele amor veio pelas mãos de uma única razão, chegou com um só adjetivo, que era amor amor, que era ter na prática amorosa seu próprio fim, a saber: amar e ser amado na mesma medida. Era um amor aterrissado em final de milênio, prenunciando caminhos infinitos de onde não seria possível sair, já que só de estar ali, aconchegado, amor amor, já cumpria sua função essencial de ser um amor que só queria amar e ser amado.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Back in 1999

Você me olha como se nunca tivesse me visto antes, como se procurasse dentro de mim alguma coisa e tanto que às vezes fico até sem graça mas então me lembro que você me olha mesmo é distraído e esquecido de que os olhos são meus e vivos, como se você olhasse para uma flor, um copo de cerveja, um anel que acabamos de comprar juntos e então é assim desse jeito que você me olha mas por outro lado é também assim que você olha para os outros e com esta mesma atenção faz todos pensarem que você está vendo outra coisa dentro dos olhos deles, como se olhos, objetos e livros e todo o resto que houvesse no mundo para ser visto por você funcionasse como um conjunto de pequenos espelhinhos onde você buscasse o reflexo de uma verdade sobre você mesmo; é esta verdade que procuro dentro dos seus olhos, quando vejo os meus espelhados nos seus, esta história que reviro nas linhas da sua mão, nas marcas do rosto, nas histórias que você repete há anos e eu morro de achar graça como se as ouvisse pela primeira vez.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Filme americano

Saímos da pizzaria e somos quatro dentro do carro ouvindo The Cure, alguém diz, "estou me sentindo com 18 anos", o vento de verão atravessa a Marginal enquanto cortamos as rotundas e fazemos planos para o fim de semana, para o casamento da Agatha, vemos o futuro como se fosse um filme americano. Está tudo bem, afinal, o tempo passou por nós como se nada. Chego em casa para ver a novela do João, os amigos, as histórias, os sotaques, o Brasil. Tudo tão longe, tão perto, tão bom.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Na quinta da avó da Marina

À noite, a casa vazia. Meu bebê foi passar o dia na quinta da avó da Marina... E ficaram para dormir. Uma coisa.

Festa do pijama

Domingo à noite deixamos a avó na Santa Apolônia, a carinha de choro, "eu quero viajar com a vó", e afunda o rosto na minha barriga, a avó se rasga toda, entramos no trem, a avó mostra a cabine, o vagão restaurante e na hora de saltar, os olhinhos espichados de novo, "eu quero viajar com a vó", ela insiste sofrendo; despedidas e de mãos dadas cortamos a gare de volta ao carro, "que tal fazermos uma festa do pijama, mamãe?", a impressionante capacidade de recuperação. Claro que sim, vamos fazer pipocas, tomar sorvete, "as pipocas acabaram", (ela controla os estoques), não faz mal a gente compra. Ainda domingo à noite, banho tomado e cabelo lambido, camisola da hello kitty, a minha camisola de pele de ovo comprada há mais de dez anos no mercado da prisão no Rio Grande do Norte. A brisa de Natal percorre a sala, atravessando o Atlântico: ela assiste desenho deitada no sofá, no colo o bowl das pipocas, o saco de batatas fritas e o pacote de gomas. Levanta-se sozinha e vai buscar um sorvete no congelador. As pipocas dançam pela sala conduzindo meu coração.

sábado, 2 de agosto de 2008

No céu

Branca de neve assiste ao desenho das oito e meia da noite: "eu posso porque tou de férias, né, mamãe?"; depois do jantar já foram dois mini sorvetinhos, a boca lambuzada de chocolate até irmos escovar os dentes, no espelho as bochechas rosas da piscina no fim da tarde. Mais cedo, saindo do restaurante, "quando eu for velhinha a mãe já vai estar no céu...", sequer me dá tempo de replicar e avança: "mas depois eu vou pro céu pra encontrar com a mãe e vamos ficar grudadas para sempre, né?". Diz isso e sai correndo para a avó. Tiro fotos das duas dançando na praça, brincando de frente para o mar. Abrem os braços fazendo pose e riem com vontade. Um restinho de tristeza dentro de mim se desmancha de vez nas risadas das duas. Pegamos o carro para atravessar a ponte. O dia é quente e o céu, aqui.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Vinte anos esta noite

A noite é fresca e larga como o sorriso tranquilo da moça de Angola que nos serve a mesa. As conversas dançam em torno dos mesmos assuntos enquanto pessoas passam e sorriem para nós. Ganhamos a rua, o rapaz para mim, "linda", ele diz. As ladeiras são só nossas e as cervejas, geladas. Dani encontra Tomás e esta frase é cheia de significados.  Damos piruetas e saltinhos na pista de dança enquanto uma menina planta bananeira sobre o sofá. "Vamos sair daqui", Dani lidera. Subimos e descemos ladeiras às gargalhadas. Reacendo-me como as rosas da primavera neste Agosto que se inaugura agora. "Está tudo certo na nossa vida, né?", Dani conclui. Tenho vinte anos esta noite.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Hora do almoço

Ele chega com histórias: "passava todos os dias por este jardim quando ia trabalhar", e mostra a foto: a praça arborizada em frente da casa onde ele vivia sob uma luz que só Paris conhece, tudo parecendo o cenário de um filme, ele, o jardim, a tarde; depois ele me conta das três velhinhas com quem conversou na Irlanda, estavam sentadas, cada uma em sua cadeira, olhando a paisagem, "no meio do nada", ele ressalta, e vejo novamente cenários, imagens, histórias. A conversa avança: pedimos a sobremesa e ele diz que já viajou de trem decidindo o destino no vento, que domingo foi ver Batman e que uma vez na Escócia pegou oito caronas (ele diz "boléia") para chegar a Edimburgo. Na hora do café, ele ensina que na escola da psicologia européia não é permitido ter vivido a mesma dor que os pacientes, "para ter o distanciamento suficiente e poder tratá-los". Jura?, eu muito curiosa. Ele continua: "a escola norteamericana é o contrário: é aceito ter passado por aquilo para poder entender e tratar estes pacientes". Pedimos a conta, ele fala uma besteira qualquer que me faz soltar uma gargalhada. O tom da tarde é de encantamento. Não sei quase nada sobre ele.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Saindo da casa da Cris

Saímos da casa da Cris nos protegendo do poderoso vento do verão, "virou até o lixo da rua, você viu?", diz a Cris durante o jantar. "A cachorrinha tá nervosa, mamãe!, ela está trancada no quarto", explica Manuela, radiante com o programa num domingo à noite. Amigos em volta da mesa, bacalhau com natas, vinho e cheesecake de sobremesa; as conversas giram em torno de relacionamentos e a fórmula mágica para o seu sucesso até concluirmos que não existem regras nem receitas infalíveis. Redescobrimos a pólvora e ficamos muito satisfeitos com isso, enquanto Zé se declara o rei do grupo da coca light, "mas você está bebendo vinho", alguém resssalva, "eu sei mas mesmo assim eu sou o rei do grupo da coca light", e ri. As palavras dançam sobre a mesa enquanto Fabiana diz, "mas você não está aqui como meu pai, mas sim enquanto amigo", o pai ouve, sorri, mas cada frase que dirige a ela começa por um "minha filha" tão doce quanto o cheesecake que compartimos, e é tudo tão verdadeiro neste domingo de verão. Vamos para casa, Manuela com um saco cheio de balões debuta na noite aproveitando as férias, o cheesecake era de iogurte: novos sabores e amigos, o verão subitamente recomeçando do zero, nova sensação de pertencimento a uma realidade maravilhosa chamada vida.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

A gente realmente se recupera

O impressionante é que a gente realmente se recupera até daquelas coisas que a gente achava que não ia superar nunca, um belo dia a gente acorda e... passou!, simplesmente passou toda aquela dor, saiu a areia dos olhos, foi-se a sensação de estar andando dentro d´água, derreteu o peso nas pernas e acordar vira simplesmente acordar, recuperando o tempo de antes, a alegria singela de beber um copo d´água fresca no verão; será maturidade o nome; será descobrir que a vida é um dia depois do outro e isso é tão redundantemente cafona que vou fingir que nunca fiz esta frase. Sexta-feira de manhã, chakras ativos, a vida toda pela frente.

Vai dormir

Eu digo "vai dormir", ela pergunta se pode dormir na cama da mãe, eu digo que sim, ela deita, eu apago a luz, "boa noite, mamãe", saio do quarto para o computador e logo depois a carinha na porta do quarto, "eu quero ficar com a mãe", eu digo "vai dormir", "mas eu quero ficar com a mãe", esse diálogo se repete seis, sete vezes, até que argumento, "deita aqui na cama da vó que dá pra você ficar me vendo", ela hesita mas acaba concordando até porque era isso ou ir dormir sozinha no próprio quarto, eu viro pro computador enquanto ela se deita na cama da avó, a porta aberta para poder ficar me vendo, mesmo de costas!, que amor é esse, meu deus, como posso virar às costas a este amor do tamanho do mundo inteiro, giro a cadeira de rodinha pra ver se ela dormiu e, ao ver a cadeira girando, a cabecinha levanta, um sorriso explodindo na cara redonda e rosa da minha menininha, são onze da noite, ela tem colégio amanhã, mas não consigo brigar: é amor demais.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Coisas espetaculares

O danado é que o outro não termina nunca, mas é que a gente não sabe mesmo quem é que tá do outro lado, este outro que nos não cansa de surpreender; quando a gente acha que já viu tudo, ó!, leva outra rasteira, e é realmente impressionante como é possível que seja assim.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Um dia como hoje

A cozinha dança em clima de festa nesta sexta-feira ensolarada quando a vida parece um longo rio tranquilo e Alessandra e Creusa enrolam beijinhos de côco na cozinha, "os brigadeiros vamos fazer quando sua mãe acordar", o cheiro de leite de côco interessa à cachorrinha de pescoço esticado pra ver se cai alguma coisa no chão; "duas latas de leite condensado dá pros beijinhos?", concluímos que é mais do que suficiente já que vamos nos focar nos brigadeiros, "que é o que todo mundo gosta, mesmo", o cachorro quente vamos fazer amanhã, dia da festa, quando só vai ficar faltando comprar gelo e encher os balões com a máquina que o Ricardo conseguiu emprestada. Minha bebê vai fazer cinco anos. Vai dar tudo certo, antevejo o gramado coberto de balões cor de rosa. A casa aberta, o peito leve. Amanhã e sempre.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Ainda sobre nossa impressionante capacidade de recuperação

Mas também há coisas que se perdem para sempre.

Historinha misteriosa

Ela passou por mim de carro, um sorriso que julguei cúmplice, "vamos tomar um café?", respondi que não, "tou indo pro trabalho", de repente nem havia cumplicidade no sorriso: a gente acaba vendo aquilo que quer e não o que a realidade apresenta, não é?, a verdade é que eu tinha tanto a dizer pra ela, precisava tan-to dos conselhos dela que não podia nem responder ao seu bom dia quanto mais  ir tomar um café. Ela bem me disse, "não vou me meter na história de vocês dois", achei frio na ocasião. Ela estava certa. Eu tinha tanto a dizer. Eram nove e meia da manhã quando fiquei pequenininha, do tamanho de um botão. Vesti meus Rayban pra disfarçar o susto, este tremendo susto da vida.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Um bom dia

A professora: "não trouxe o biquini, Manuela?", são quase nove da manhã, acorda uma arara desesperada dentro de mim, "tinha que trazer biquini??", um meio tom acima do acorde matinal, a professora me tranquiliza, mostrando uns biquinis, "comprei no chinês pra situações assim", a pequenininha se desculpa, "eu esqueci de dizer à mãe", o coraçãozinho dela achando que o erro foi seu, não foi, não foi, não foi, "tinha uma cartinha do colégio, a mãe que não leu, meu amor", ela se alivia, fica feliz com o biquini do chinês, azulão de bolinhas brancas e alça verde limão, ela gosta do que a vida lhe oferece; o biquini é um horror, dou um beijinho nela, no caminho encontro com outra mãe que também tinha esquecido biquini, toalha, tudo, "minha filha teve um ataque, tou indo em casa buscar as coisas"; agradeço a deus e à ordem das coisas pela minha menininha que gosta de tudo. Entro no carro, a manhã é linda, estupefaciente. Na Marginal já não tenho dúvidas. É o tempo de chegar em casa, arrumar a bolsinha: o biquini novo comprado no sábado, a toalha pink do ursinho, a professora, "ela vai ficar feliz de ter as coisinhas dela". Sorrio, coloco os óculos escuros e tenho um bom dia.

terça-feira, 24 de junho de 2008

A mãozinha dela

Seguro na mãozinha dela e vamos cortando a lama debaixo de chuva e contra o vento, vejo suas meias cor de chumbo, a cor do uniforme, o casaco de lã cor de camelo, o capuz apertado na cabeça pra não molhar, o narizinho, ela caminha do meu lado apertando o passo quando eu digo, "anda rápido, meu amor", as perninhas de quatro anos aceleram, abro o meu guarda-chuva sobre o seu, do winnie the pooh, onde ela pensa abrigar-se da chuva, até que percebe e me repreende: "mamãe, o seu guarda-chuva está tapando o meu!", eu digo que foi sem querer, que sei que o guarda-chuva dela é ótimo e que dá conta de protegê-la da água que cai do céu, "quando a gente morre vai todo mundo pro céu, mamãe?", penso que chuva é uma palavra linda, ela caminha feliz e confiante debaixo do seu micro guarda-chuva do winnie the pooh, passinhos rápidos nos sapatos sujos de lama até entrarmos pelo portão do colégio; o dia é feio, o vento enche de desânimo as perspectivas desta sexta-feira, mas a vida parece linda: vai ser assim, tem sido assim, as duas de mãos dadas cortando a lama, o tempo, vencendo tudo. 

Então tá

Então tá! Chegamos aqui, depois de uma prévia experiência traumática no universo dos blogs (acredite quem quiser, meu blog anterior foi surrupiado! Isso mesmo!) Explico: a gênia aqui tinha escolhido como senha 123456... E não é que outra alma foi lá, com uma senha igual a minha?E tomou posse do meu blog! Coisas do fabuloso mundo da internet... Mas, tudo bem, um blog chamado "Um pouquinho de tudo" não merecia existir mesmo. O fato é que, como sabemos, o tempo cura  tudo, até minha tristeza pelos textos perdidos, afinal nada se perde, tudo vira uma outra coisa. Tudo. Menos os meus textos, que realmente se perderam pra sempre. Coração limpo. Desejo muito boa sorte pro feliz portador da senha 123456, e vâmo com tudo!