sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Todos os domingos da minha vida, essa janela aberta sobre maio

(Para Marcos)
Todos os domingos da minha vida, acho que até uns 16 ou 17 anos, eu passei brincando no quintal da casa dela, e olha que ela nem era a avó que a gente mais gostava, eu e as minhas irmãs, horrível falar isso, né?, mas é que ela não deixava a gente pegar fruta, e lá tinha ameixa, tinha jambo, não era como a mãezinha, não, nossa, a mãezinha sim que foi metade da minha vida, quando ela morreu em 87 parecia que era o chão se abrindo, eu ficando mais sozinho, mais complicado, mais diferente dos outros, não sei quem foi que me falou que quando você não pega um bebê no colo, deixa ele abandonado, ele faz autismo, mais ou menos tipo isso que me acontece na noite quando vai dando a hora, quero fazer e acontecer, eu surto, tiro a camisa e danço em cima da mesa, foi uma loucura quando a mãezinha morreu, eu vim ao mundo e a mãezinha já tava lá em casa, era como se fosse minha mãe, mesmo, mas eu já te contei isso mais de mil vezes, sei que agora é por isso que eu vou pra lá, não vou demorar lá, não, vou amanhã de noite, ver minha avó, tá com 92 anos, deve tá igual um bebezinho que fez autismo, aquela coisa toda, tem três anos que não volto lá, cê não entende isso, não, né?, cê nasceu e viveu a vida toda aqui, cê não sabe como é isso de ser do interior, é como se isso mudasse toda a vida da gente o tempo todo, cê sabe que eu tento mas não consigo deixar de me espantar com as coisas, de ver novidade em tudo, gozado porque você não se espanta com mais nada, né?, gosto de ficar do seu lado, você explicando como vai ser a nossa vida, eu não, eu me espanto muito, sou do interior o tempo todo, mesmo quando tou dormindo, cê sabe que eu tento, mas é que eu passei todos os domingos da minha infância brincando naquele quintal e ela não deixava a gente pegar nem fruta, nem pegar passarinho, o vô deixava a gente fazer tudo, o vô marido dela, o marido da mãezinha eu nem conheci, acho que ele morreu em 68, 69, sei lá, eu nem tinha nascido, eu acho; sei que a gente brincava lá, eu acabava brigando com todos os meus primos, minha irmã saía batendo na gente, a gente se escondia no quintal daquela casa que meio que foi a minha vida toda, é engraçado, parece que a gente vai sendo empurrado pra frente quando vai morrer alguém, o vô morreu no réveillon tem dois anos, cê lembra? a gente passou o réveillon triste, com aquelas pessoas que nunca foram a Minas, aquela gente louca naquela casa de praia que parece que nunca teve avô, ele morreu às dez da noite, ó só que triste, na minha família parece que nada dá certo, queria tanto ter tido um irmão homem, pro meu pai ficar feliz, pra casar e morar perto deles, pra ir pra roça, mas eu escolhi ver o mundo, ou foi o mundo que me escolheu, sei lá, sei que deu nisso, fui ver as coisas, acabei vendo você e a gente veio parar aqui nesta noite, essa janela aberta sobre maio, essa brisa fresca, sei que vi tanta coisa que quando volto pra casa parece que o mundo encolheu, que cabe tudo numa caixinha, ou fui eu que fui longe demais, eles me olham, eu olho pra eles, a janta na mesa, a gente senta, come, toma café e vai dormir, depois no dia seguinte a gente acorda, senta e toma café, de novo, sei lá, parece que hoje tou sem bordão, tá faltando uma rima, sei que tou doido que chegue amanhã pra viajar, queria mesmo, gozado, nunca falei isso pra ninguém antes, queria era botar eles todos numa caixinha, a mãe fazendo o café já com açúcar, e levar todo mundo junto comigo quando eu fosse ver o mundo.

Sem comentários: