quarta-feira, 21 de julho de 2010
hora de dormir
o olho redondo virado pra mim, a bochecha esprimida no travesseiro, a camisola de pele de ovo branquinha amarfanhada, a mecha de cabelo atravessando o rosto, eu digo: "dorme", ela insiste que não está com sono, "quero um leite", ela diz. Me arrasto pra esquentar um leite no microondas, ela espera no quarto lutando contra o sono, quando chego com o leite o sorriso se abre, senta na cama tão feliz que chega dá pena, pede: "conta uma história da bisa", eu digo que não, que agora é hora de dormir, o leite entorna no edredon branco e escorre pela caneca, "foi só um pouquinho", ela diz, limpando com a camisola. "pronto, agora, chega, dormir!", limito; "quero fazer xixi", vai ao banheiro e depois volta e continua o olho redondo virado pra mim. É verão, durante as férias pode dormir na cama da mãe, "todos os dias?", "sim todos os dias", respondo. Abro o livro e o olho redondo continua virado pra mim: penso até quando vai durar esse fascínio, até quando ela vai querer dormir comigo todas as noites, seguro esse momento sabendo que ele é feito de água e escorre pela mão, feito o tempo, a noite, o leite.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
o que eu queria mesmo
mas o que eu queria mesmo era uma coisa que me sacudisse, me tirasse do eixo e especialmente da minha cabeça, me alienando dos meus próprios pensamentos, ui, me dando uma folga nessa atividade incessante de pensar e repensar todas as idéias como se a cada vez que voltasse a elas fosse possível transcorrer recantos ainda não pensados dos mesmos velhos pensamentos, como se não soubesse que as melhores soluções surgem quando não estamos a procurar (eu disse a procurar?, eu disse a procurar?), então corrijo: quando não estamos procurando por eles, o gerúndio sempre tão confortavelmente esparramado; mas enfim, voltando: um assunto que me tirasse de mim, que há de vir, feito veio o milagre, feito virá o assunto, feito virá a terça-feira depois desta segunda sem motivos.
terça-feira, 28 de abril de 2009
A vida toda num minuto
e como seria se eu voltasse pro brasil?, acho que comi demais no jantar, manuela dormiu sem saber na-da, não tem noção das letras ainda, será que tá passando um filme bom na televisão?, desço ou não desço?, "posso tomar suco verde na hora do almoço?", pergunto à claudinha no messenger, imprimo todas as letras do alfabeto em corpo 72 e saio espalhando pelo quarto dela, meu pé está gelado, não vou ligar o aquecimento nem a pau, não é possível que a primavera não chegue, uma bela hora a primavera tem que acontecer, tem que acontecer uma coisa bacana na minha vida, tou sentada esperando por um milagre, ele sempre veio, o milagre sempre veio, por que não haveria de vir agora?, "vai dar tudo certo", claudinha diz, mandando um smile, vou descer pra ver o que tá passando na televisão, amanhã tenho que comprar farinha de trigo, creme de leite e chocolate pro bolo da agatha; gostaram do meu bolo, pediram de novo!, tá vendo?, o milagre já está acontecendo; mas meu pé continua gelado: morreu a mãe da dona lisete, beleza ronca embaixo da mesa, tou muito preocupada com a gripe suína e se vão atrasar meu salário, não posso passar o feriado sem dinheiro: preciso caprichar nos ingredientes pro bolo da agatha, o milagre acontecendo, não sei com quem vou deixar a manuela no sábado à noite: talvez leve-a comigo na festa da agatha, ela vai adorar lamber o brigadeiro da panela, o suco verde que aguarde, "me perdoa se eu me excedo em minha euforia", é a letra da marisa monte que ouvi obsessivamente ao longo da tarde, eu e a claudinha a gente se fala desde os tempos do icq, que fim levou o icq?, meu pé continua gelado, beleza continua roncando, manuela só acorda manhã, o silêncio do estoril corta o ar feito uma faca, corta este minuto e encerra nele a vida toda.
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
Historinha
Quando eu disse que era gay ela se jogou em cima de mim, me abraçando com força e rindo, "que alívio, que alívio!", ela ria, achei engraçada a reação dela e abracei-a de volta mas não entendi direito o porquê de tanto alívio, pra falar a verdade nem pensei muito naquilo, eu queria mesmo era contar do Alexandre, quem ele é, o que faz, o tanto que gosto dele, pensando bem até que ela demorou a entender as dimensões da nossa história, foi só um tempo depois que ela perguntou, seus olhos redondos espantados, "você é casado?", o homem pisando na Lua pela primeira vez, eu disse com orgulho que sim, que há seis anos, ela parecia feliz com minhas respostas, (ela estava feliz?), e me abraçava de novo, dizia que eu era lindo, "as mulheres devem se jogar em cima de você, não?", eu ria e avançava no que queria contar, "mudei a minha vida toda por causa dele, por isso voltei pra cá, não podia mais ficar longe dele"; à nossa volta pessoas dançavam Madonna, drinks desciam leves pelas nossas gargantas, invadimos a pista com furor e fomos com paixão aos copos, os nós esquisitos desmanchavam-se imprimindo retratos mais nítidos, "é como se as peças se encaixassem e tudo adquirisse o sentido que precisava ter", ela disse. Meu rosto ardia, meus olhos radiantes: uma cortina abria-se diante de nós, era a primeira vez que nos víamos.
sábado, 8 de novembro de 2008
Mas o que eu queria mesmo
Mas o que eu queria mesmo era que o telefone tocasse agora e fosse você dizendo que tá com saudade e que precisa me ver agora ou vai enlouquecer de tanta paixão e que a noite é larga e que a vida é comprida e que a gente é jovem e que vai dar tudo certo entre a gente, seja lá o que for tudo, seja lá por quanto tempo, e que você dissesse ainda que não tem certeza de nada além da vontade de me ver, que a vida tem que ser vivida com paixão, liberdade, responsabilidade e ousadia, que os sonhos viram verdade, que a gente pode escolher ser feliz e, numa noite como essa, você quer simplesmente me dar um beijo. Era isso que eu queria. Qualquer outra coisa diferente disso, tou fora.
Como é suposto que aconteça em Novembro
Vontade de tantas coisas: de saber o futuro para confirmar já minhas infundadas teorias sobre o rumo para onde os dias me levarão, de ter uma bola de cristal e adivinhar o que vai acontecer, de mergulhar nos seus olhos claros pra ler a verdade dos momentos que dividimos juntos, tantos e tão distintos ("é que a gente mudou tanto desde que a gente se conheceu, não foi?"). Eu digo uma besteira, você ri, eu pergunto "de quê que você tá rindo?", você imita a minha voz e ri de novo, como se eu fosse a pessoa mais fascinante desse mundo. Você é a pessoa mais fascinante desse mundo, pelo menos nesta noite de sábado, que descrevo: Manuela de banho tomado, pizza jantada, pijama de flanela e chinelo de gatinho cor-de-laranja, barulho da Iara de cabelo lavado arrumando a cozinha, Beleza, a shitsu, passa apressada e penso que daqui a pouco vou tomar um banho para encontrar uns amigos. Faz frio na rua como é suposto que aconteça em Novembro. Sem sustos, a vida toda nos seus lugares. E ponto.
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
Todos os domingos da minha vida, essa janela aberta sobre maio
(Para Marcos)
Todos os domingos da minha vida, acho que até uns 16 ou 17 anos, eu passei brincando no quintal da casa dela, e olha que ela nem era a avó que a gente mais gostava, eu e as minhas irmãs, horrível falar isso, né?, mas é que ela não deixava a gente pegar fruta, e lá tinha ameixa, tinha jambo, não era como a mãezinha, não, nossa, a mãezinha sim que foi metade da minha vida, quando ela morreu em 87 parecia que era o chão se abrindo, eu ficando mais sozinho, mais complicado, mais diferente dos outros, não sei quem foi que me falou que quando você não pega um bebê no colo, deixa ele abandonado, ele faz autismo, mais ou menos tipo isso que me acontece na noite quando vai dando a hora, quero fazer e acontecer, eu surto, tiro a camisa e danço em cima da mesa, foi uma loucura quando a mãezinha morreu, eu vim ao mundo e a mãezinha já tava lá em casa, era como se fosse minha mãe, mesmo, mas eu já te contei isso mais de mil vezes, sei que agora é por isso que eu vou pra lá, não vou demorar lá, não, vou amanhã de noite, ver minha avó, tá com 92 anos, deve tá igual um bebezinho que fez autismo, aquela coisa toda, tem três anos que não volto lá, cê não entende isso, não, né?, cê nasceu e viveu a vida toda aqui, cê não sabe como é isso de ser do interior, é como se isso mudasse toda a vida da gente o tempo todo, cê sabe que eu tento mas não consigo deixar de me espantar com as coisas, de ver novidade em tudo, gozado porque você não se espanta com mais nada, né?, gosto de ficar do seu lado, você explicando como vai ser a nossa vida, eu não, eu me espanto muito, sou do interior o tempo todo, mesmo quando tou dormindo, cê sabe que eu tento, mas é que eu passei todos os domingos da minha infância brincando naquele quintal e ela não deixava a gente pegar nem fruta, nem pegar passarinho, o vô deixava a gente fazer tudo, o vô marido dela, o marido da mãezinha eu nem conheci, acho que ele morreu em 68, 69, sei lá, eu nem tinha nascido, eu acho; sei que a gente brincava lá, eu acabava brigando com todos os meus primos, minha irmã saía batendo na gente, a gente se escondia no quintal daquela casa que meio que foi a minha vida toda, é engraçado, parece que a gente vai sendo empurrado pra frente quando vai morrer alguém, o vô morreu no réveillon tem dois anos, cê lembra? a gente passou o réveillon triste, com aquelas pessoas que nunca foram a Minas, aquela gente louca naquela casa de praia que parece que nunca teve avô, ele morreu às dez da noite, ó só que triste, na minha família parece que nada dá certo, queria tanto ter tido um irmão homem, pro meu pai ficar feliz, pra casar e morar perto deles, pra ir pra roça, mas eu escolhi ver o mundo, ou foi o mundo que me escolheu, sei lá, sei que deu nisso, fui ver as coisas, acabei vendo você e a gente veio parar aqui nesta noite, essa janela aberta sobre maio, essa brisa fresca, sei que vi tanta coisa que quando volto pra casa parece que o mundo encolheu, que cabe tudo numa caixinha, ou fui eu que fui longe demais, eles me olham, eu olho pra eles, a janta na mesa, a gente senta, come, toma café e vai dormir, depois no dia seguinte a gente acorda, senta e toma café, de novo, sei lá, parece que hoje tou sem bordão, tá faltando uma rima, sei que tou doido que chegue amanhã pra viajar, queria mesmo, gozado, nunca falei isso pra ninguém antes, queria era botar eles todos numa caixinha, a mãe fazendo o café já com açúcar, e levar todo mundo junto comigo quando eu fosse ver o mundo.
Todos os domingos da minha vida, acho que até uns 16 ou 17 anos, eu passei brincando no quintal da casa dela, e olha que ela nem era a avó que a gente mais gostava, eu e as minhas irmãs, horrível falar isso, né?, mas é que ela não deixava a gente pegar fruta, e lá tinha ameixa, tinha jambo, não era como a mãezinha, não, nossa, a mãezinha sim que foi metade da minha vida, quando ela morreu em 87 parecia que era o chão se abrindo, eu ficando mais sozinho, mais complicado, mais diferente dos outros, não sei quem foi que me falou que quando você não pega um bebê no colo, deixa ele abandonado, ele faz autismo, mais ou menos tipo isso que me acontece na noite quando vai dando a hora, quero fazer e acontecer, eu surto, tiro a camisa e danço em cima da mesa, foi uma loucura quando a mãezinha morreu, eu vim ao mundo e a mãezinha já tava lá em casa, era como se fosse minha mãe, mesmo, mas eu já te contei isso mais de mil vezes, sei que agora é por isso que eu vou pra lá, não vou demorar lá, não, vou amanhã de noite, ver minha avó, tá com 92 anos, deve tá igual um bebezinho que fez autismo, aquela coisa toda, tem três anos que não volto lá, cê não entende isso, não, né?, cê nasceu e viveu a vida toda aqui, cê não sabe como é isso de ser do interior, é como se isso mudasse toda a vida da gente o tempo todo, cê sabe que eu tento mas não consigo deixar de me espantar com as coisas, de ver novidade em tudo, gozado porque você não se espanta com mais nada, né?, gosto de ficar do seu lado, você explicando como vai ser a nossa vida, eu não, eu me espanto muito, sou do interior o tempo todo, mesmo quando tou dormindo, cê sabe que eu tento, mas é que eu passei todos os domingos da minha infância brincando naquele quintal e ela não deixava a gente pegar nem fruta, nem pegar passarinho, o vô deixava a gente fazer tudo, o vô marido dela, o marido da mãezinha eu nem conheci, acho que ele morreu em 68, 69, sei lá, eu nem tinha nascido, eu acho; sei que a gente brincava lá, eu acabava brigando com todos os meus primos, minha irmã saía batendo na gente, a gente se escondia no quintal daquela casa que meio que foi a minha vida toda, é engraçado, parece que a gente vai sendo empurrado pra frente quando vai morrer alguém, o vô morreu no réveillon tem dois anos, cê lembra? a gente passou o réveillon triste, com aquelas pessoas que nunca foram a Minas, aquela gente louca naquela casa de praia que parece que nunca teve avô, ele morreu às dez da noite, ó só que triste, na minha família parece que nada dá certo, queria tanto ter tido um irmão homem, pro meu pai ficar feliz, pra casar e morar perto deles, pra ir pra roça, mas eu escolhi ver o mundo, ou foi o mundo que me escolheu, sei lá, sei que deu nisso, fui ver as coisas, acabei vendo você e a gente veio parar aqui nesta noite, essa janela aberta sobre maio, essa brisa fresca, sei que vi tanta coisa que quando volto pra casa parece que o mundo encolheu, que cabe tudo numa caixinha, ou fui eu que fui longe demais, eles me olham, eu olho pra eles, a janta na mesa, a gente senta, come, toma café e vai dormir, depois no dia seguinte a gente acorda, senta e toma café, de novo, sei lá, parece que hoje tou sem bordão, tá faltando uma rima, sei que tou doido que chegue amanhã pra viajar, queria mesmo, gozado, nunca falei isso pra ninguém antes, queria era botar eles todos numa caixinha, a mãe fazendo o café já com açúcar, e levar todo mundo junto comigo quando eu fosse ver o mundo.
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